quarta-feira, 11 de julho de 2012

história infanto-juvenil: "Pai posso dar um soco nele?"


A INVASÃO DOS BÁRBAROS
Tudo começou numa quarta-feira quente de janeiro. Era mês de colocar as leituras em dia. Esquecer o mundo lá
fora e se embrenhar durante trinta dias no mundo imaginário dos livros!
Brammmm!
A porta da sala bateu violentamente contra a parede. Abriram com uma bomba poderosa: o pontapé. Os bárbaros
chegaram.
- Pai, quero jogar videogame!
- Tio, quero Nescau!
- Tio, quero guaraná!
- Pai, quero bolacha!
Todas falavam ao mesmo tempo. Exigindo seus direitos. Eram seis anjinhos: Daniel e André, filhos. Maurício,
Vinícius, Lucas, Mayra, a única menina bárbara, sobrinhos.
- Mães irresponsáveis. Largaram essas crianças neste lugar minúsculo e foram passear no shopping. Como vou ler
com tanto barulho!?
Enquanto isso, as crianças começaram uma guerra de almofadas no quarto do casal.
- Parem com esse barulho. Venham aqui.
Empurrando, chutando, esmurrando, xingando uns aos outros, chegaram na porta da saleta. Todas tentavam passar,
ao mesmo tempo, pela porta.
- Silêncio!!! Sentem-se na mesa. Não em cima da mesa! Vocês vão quebrar o vidro e sua mãe me mata. Pelo amor
de Deus, sentem-se nas cadeiras! Tudo bem. Agora silêncio! Só eu falo! O que vocês querem fazer além de destruir
o apartamento e me deixar louco?
Gritando, falavam ao mesmo tempo:
- Quero ir ao Play Center, ao zoológico, Cidade da Criança, ao Parque da Mônica...
- Nem pensar! Eu não sou louco para ficar andando com seis crianças, cheias de energia, em parques enormes. Que
tal um programa diferente?
- Qual?
- Acampar!!!
- Acampar???
- É. Vocês nunca acamparam? Mas não vamos a um camping cheio de confortos. Vamos acampar numa mata,
sozinhos.
- Igual aos escoteiros, tio?
- Mais ou menos, Lucas.
- Vai ser legal, tio?
- Garanto que vocês vão gostar. Vamos fazer muitas coisas. Será divertido.
- Para onde vamos, tio? - perguntou Mayra.
- Você não vai - gritou Daniel.
- Acampamento é só para homens - completou Vinícius. Mayra mostrou a língua para os dois e disse:
- Bobões. Eu também vou, tio?
- Claro!
- Alguém vai ter de fazer a comida e lavar a louça - resmungou Lucas.
- Quero que vocês peguem as mochilas da escola e tirem os materiais de dentro e...
- Que mochilas, tio? - perguntou Lucas - a minha não presta para mais nada.
- Nem a minha!
- Nem a minha!
- Posso imaginar o estado em que elas se encontram. Vou sair para comprar mochilas, mantimentos e alguns
utensílios para acampar. Por favor, não destruam o apartamento enquanto eu estiver fora.
Ao voltar do supermercado, uma gritaria infernal o recebeu. Parecia que o mundo estava se acabando num terrível
cataclismo. Era como se um bando de dentistas com brocas e enfermeiras com injeções tivessem invadido o
apartamento e perseguisse todas as crianças, que fugiam desesperadas, apavoradas, aos berros derrubando tudo que
encontravam pelo caminho. Um verdadeiro campo de batalha final.
- Crianças, parem com esse inferno e venham aqui!
Todas correram para a cozinha se atropelando e derrubando coisas pelo caminho.
-Silêncio! Já comprei tudo o que precisaremos para acampar. Ficaremos uma semana na mata, sem shopping e
MacDonalds. Vamos arrumar as coisas dentro das mochilas que eu comprei para vocês. Amanhã bem cedo,
partiremos para nossa aventura.
- Minha mãe não vai me deixar ir, tio.
-Vai sim, Maurício. Suas mães vão adorar ficar uma semana longe de vocês nas férias. Agora cada um pegue uma
mochila e coloque as coisas que eu comprei. Tem um conjunto para cada um. As mochilas são iguais, mas sempre
têm dois querendo a mesma.
- Parem com essa briga!
O ACAMPAMENTO
Cinco horas da manhã. Todos foram acordados com o saxofone de brinquedo do André.
-Atenção, vocês têm dez minutos para ficarem prontos. O café já está na mesa. Comam bastante. Este é o último
café civilizado. Tirem os pijamas e coloquem as roupas que estão perto de vocês. Vamos, rápidos!
- Tio, o Maurício pegou a minha meia!
- Você pegou o meu tênis!
- Tio, o Daniel está mostrando a língua para mim!
- Tio, o Lucas não quer dar minha camiseta!
- Parem com as brigas. O último vai sair sem tomar café!
- Tio, estou pronta!
- Muito bem, Mayra. Você foi a primeira. Pode tomar café, depois escove os dentes. Vamos lá, seus molengas!
Vão deixar a Mayra, uma menina, ser mais rápida do que vocês?
Quando todos estavam tomando café, surgiu na porta da cozinha um vulto que disse:
- Querido, você vai mesmo cometer esta loucura? Vai levar estas pestin... crianças para acampar. Acho que você
não está no seu juízo perfeito.
- Louco! Eu!
- Ir com essas crianças para o meio do mato sozinho. Eu sei que elas são selvagens, mas não precisa exagerar.
Assim é demais. Você está muito longe de ser um Indiana Jones.
-Não se preocupe, amor. Na semana passada eu aumentei o valor do meu seguro de vida. Você não ficará
desamparada. Nada demais acontecerá. Nós já vivemos numa selva que é muito mais perigosa.
- Vou voltar para a cama. Boa sorte para todos. Vocês vão precisar.
- Aproveite. Será uma semana longe delas. Vamos, crianças. Cada uma pegue suas coisas.
Desceram pelo elevador. Na garagem, entraram no carro e saíram. Em cinco minutos já estavam na maior
algazarra.
- Quietos! Como posso dirigir com tanto barulho?
Depois de uma hora, chegaram num estacionamento perto da estação de trem. Todos desceram e embarcaram no
trem. Depois de muita bagunça no vagão.
- Vamos descer na próxima estação. Coloquem suas mochilas nas costas.
O trem parou e todos desceram.
-Aqui começa a maior aventura de suas vidas. Dentro dessa mata moram o perigo, o desconhecido, a surpresa e
feras selvagens. Quem estiver com medo fale agora ou cale-se para sempre.
Os meninos olharam para Mayra. Como ela não disse nada eles também ficaram calados.
- Muito bem. Todos prontos?
- Sim - responderam.
- Em frente, marchem!
- Tio, para que serve o apito?- perguntou Lucas.
- É para apitar, seu burro! - respondeu Daniel.
- Não é nada disso, seu idiota! - disse Vinícius defendendo o irmão Lucas.
-Calma, crianças. Parem com esses elogios. O apito é para ser usado só em caso de alguém se perder. Basta parar
de andar e começar a apitar que os outros encontrarão. Vamos andar por aqui.
- Primeiro os homens - disse Maurício.
- Vão em frente seus bestões. O leão comerá os primeiros - disse Mayra.
- Aqui tem leão, pai?
- Não André. Mayra está brincando. Andando, andando. Meia hora depois...
- Tio, estou cansado. Podemos parar um pouco?
- Ainda não, Maurício. Agüente mais um pouco.
- Vejam, um rio - gritou Lucas.
- Nunca viu rio, seu bobo? - disse Mayra.
- Tio!
- Ham!
- Estou com sede.
- Beba um pouco de água do seu cantil.
- Mas eu estou com sede de guaraná.
- Aqui não tem guaraná, Vinícius. Beba água.
Daniel tropeçou num ramo e caiu.
- Sua besta quadrada. Não olha por onde anda? – disse Maurício.
- Pai.
- Que é?
- Posso dar um soco nele?
- Não. Limpe sua roupa. Precisamos encontrar um lugar plano para armar as nossas barracas. Olhem, ali é um bom
lugar.
- Mas tio, é perto do rio.
- Eu sei Mayra.
- E se ele subir e nos molhar?
- Rio não é mar, sua besta! - disse Vinícius.
- Não se preocupe, Mayra. É bom ficarmos perto do rio para podermos tomar banho, nadar, pescar...
- Viu, sua bestona! Não sei para que trazer menina? – perguntou André
- Ué, para lavar a louça - respondeu Lucas.
- Vocês são uns grandes bobões!
- Só quero ver quando anoitecer e ela começar a chorar com medo dos bichos e do escuro disse Maurício.
- Eu não vou chorar!
- Vai sim - disse André.
-Meninos, deixem a Mayra em paz. Aqui todos são iguais. Todos farão as mesmas tarefas.
Agora parem de discutir e vamos arrumar as nossas coisas. Mayra e Lucas juntem galhos secos para fazermos o
fogo. Daniel e Maurício me ajudem a montar as barracas. André e Vinícius tragam água.
- Tio, estou morrendo de fome!
- Todos estamos, Lucas.
Meia hora depois...
- Peguem os pratos e os talheres. Façam fila que eu vou colocar a comida. Parem de empurrar. Tem comida para
todos.
- Não tem catchup?
- Não é cachorro quente, seu bobão!
- Não, Maurício, não tem. Daniel, não fale assim.
- Nem maionese?
- Nem maionese, André.
- Tem Coca-Cola?
- Não. Suco de maracujá.
- Eu não gosto.
- Então beba água. Agora chega de conversa e comam.
Famintos, limparam os pratos em segundos. Pareciam animais, comendo e falando ao mesmo tempo. Esqueceram
toda as regras de boa conduta à mesa. Não havia necessidade de ameaças com chineladas para comerem tudo.
- Todos acabaram? Cada um lave o seu prato e o talher. Depois escovem os dentes.
- Mas isso é serviço de mulher - disse Daniel.
- Aqui cada um vai lavar o que sujar e um pouco mais.
Mayra mostrou a língua para todos.
- Agora que estamos alimentados e descansados, vamos partir para a nossa primeira aventura.
- Tio, o Maurício está me chutando.
- Maurício...
- Ele me chutou primeiro.
- Prontos? Eu vou na frente abrindo caminho. Depois Mayra, Lucas, Maurício, André, Vinícius e Daniel.
- Por que sou o último?
- Porque é o mais bobão! - respondeu Mayra.
Daniel puxou o cabelo da Mayra.
- Ai!
-Parem com isso. Você é o último porque é o maior. Na volta será o primeiro. Andando... Prestem atenção no
caminho. Quando estamos caminhando na mata devemos fazer algumas marcas no caminho para o caso de nos
perdermos. Entre outras coisas podemos ir quebrando galhos e assim vamos indicando por onde passamos. Na hora
de voltar e só seguir os galhos quebrados. Façam marcas quebrando os galhos.
Caminharam, caminharam e caminharam.
- Tio.
- Que é, Maurício?
- Estou cansado.
-Agüente mais um pouco. Olhem a natureza ao redor de vocês. Procurem ouvir os barulhos do mato. Prestem
atenção no canto dos pássaros. Aspirem o ar pelo nariz e soltem pela boca. Sintam o frescor da mata. Na cidade
não tem nada disse.
-Tio.
- Diga, Lucas?
- O que é frescor?
- É esse cheirinho gostoso que você está sentindo.
- Vamos voltar daqui. Daniel, você era o último agora é o primeiro. Guie-nos de volta.
- Mas eu não sei, pai.
- Sabe sim. Olhe as marcas que deixamos.
- Eu guio, tio.
- Não, Mayra. Outro dia você guiará.
- Vamos, espertinho. Guie-nos de volta - disse Mayra.
Daniel olhou para o mato sem saber o que fazer. Começou a andar.
- Por ai não, Daniel.
- Mas pai...
- Preste atenção na mata. Nós quebramos os galhos das plantas. Procure por eles e depois e só seguir.
Vagarosamente o grupo retomou ao acampamento. Demoraram muito mais tempo. Mas ninguém reclamou. O sol
estava forte.
- Vamos nadar?
- Vamos, tio! - gritou Mayra.
- Mas eu só sei nadar na piscina do clube - disse Maurício.
- É a mesma coisa - respondeu Vinícius.
- Vocês vão gostar. Tirem as roupas e coloquem as sungas.O último a entrar na água vai lavar toda a louça do
almoço.
Lentamente os meninos entraram na água. Mayra foi primeira. Logo se acostumaram e estavam nadando de um
lado para o outro brincando.
- Melhor que piscina -gritou Daniel.
- Olha o jacaré! -gritou Mayra.
- Aqui tem jacaré, pai? - perguntou André.
- Não. Mayra está brincando.
Cansados saíram da água.
- Ai Que fome!
- Venham almoçar.
Novamente comeram tudo e até repetiram.
- Quem quer caçar passarinho para o nosso jantar.
- Eu, eu, eu, eu, eu, eu.
- Primeiro vamos aprender a usar o estilingue. Vamos treinar tiro ao alvo.
- Igual no Play Center??
- Mais ou menos Vinícius. Estão vendo aquela árvore ali. Vou colocar esta lata nela. Agora vou tentar derrubá-la.
Prestem atenção. Vocês devem escolher uma pedra arredondada que caiba no couro do estilingue. Coloque, estique
bem a borracha faça pontaria, segure firme e solte.
- Errou, tio,
- Claro, Lucas. Estou ensinando. Veja agora.
- Errou de novo, tio.
- Vou tentar outra vez.
- Bem no alvo, pai.
- Vou colocar a lata e um de cada vez atira.
- A Mayra também?
- A Mayra também, Maurício. Vamos lá! Escolham as pedra_ façam a mira com cuidado e soltem. Podem
começar.
Um após o outro, todos erraram. Chegou a vez da Mayra. Ela pegou o estilingue. Os meninos riram. Ela colocou a
pedra. Os moleques riram. Ela fez a mira. Os pestinhas riram. Esticou e acertou em cheio na lata.
- Acertei! Acertei! Acertei! - Mayra gritava de alegria.
- Foi sorte - disse André.
- Duvido acertar de novo - disse Vinícius.
- Agora não, Vinícius. Comecem todos outra vez.
Todos erraram. Chegou a vez da Mayra. Os meninos ficaram olhando para ela fazendo caretas e macaquices. Ela
pegou pedra, fez a mira e... acertou de novo.
- Acertei! Acertei! Acertei! - Mayra gritava de alegria.
- Sorte outra vez - disse Daniel.
Mayra mostrou a língua para todos, satisfeita.
- Bem, continuem treinando senão não teremos passarinho para o jantar.
Depois de algum tempo. . .
- Agora vocês podem ir atrás dos passarinhos. Já melhoraram bastante. Mas antes vou lhes ensinar algumas regras
de caça. Temos que ser silenciosos. Qualquer barulho espanta os passarinhos. Devemos chegar o mais próximo
possível, preparar o estilingue, fazer pontaria e soltar. Peguem uns saquinhos plásticos e coloquem os passarinhos
que vocês acertarem dentro deles. Vá cada um para um lado. Não esqueçam de serem silenciosos e marcar o
caminho. Não se afastem muito. Quando ouvirem dois apitos, voltem.
As crianças entraram no mato. Mais tarde, bem mais tarde ouviram dois apitos. Voltaram com os sacos vazios e
tristes.
- É mais fácil comprar no supermercado - disse Daniel.
- Tio, eu não tenho coragem de matar os passarinhos. Prefiro passar fome.
- Certo Lucas. Já que vocês não conseguiram os passarinhos, vamos tentar pescar. Ali tem bambu. Maurício, pegue
o facão, corte seis varas. Enquanto isso, André, Vinícius e Lucas escavem o chão e procurem minhocas.
- Minhocas, tio!!??
- É, Lucas. Vocês têm medo. Peço para a Mayra.
- Não. Nós vamos.
- Daniel, Mayra, peguem a linha e a trena na barraca. Cortem com um metro e coloquem os ganchos numa das
pontas.
Depois de prontos os anzóis, cada um pegou o seu.
- Para pescar, precisamos seguir as mesmas regras da caça: silêncio e paciência. Podem ir.
As crianças entraram na água e lançaram os anzóis Esperaram os peixes morderem as iscas. O tempo passou e
nada. Logo começaram a dar sinais de inquietação. O sol começou a se esconder.
- Tio, os peixes não estão com fome -disse Lucas.
- Os peixes daqui não gostam de minhoca – completou André.
- Não está na hora do café da tarde deles - emendou Mayra.
- Pai, estou cansado - disse Daniel.
- Não quero mais pescar - disse Vinícius.
- Estou com fome, tio - disse Maurício.
- Eu também - disse Lucas.
- O que vamos comer se vocês não caçaram e nem pescaram nada. Vamos ter que preparar sopa de mato para
todos.
- Mato!!!
- Sopa de capim é ótima. Vocês já viram vaca, cavalo ou burro magros. Eles só comem capim.
As crianças se olharam com cara de choro.
- Vamos, mexam-se. Peguem o capim mais verde que acharem. Vou até o rio encher o caldeirão de água. O fogo já
está aceso.
Mudas, cansadas, desanimadas e tristes, as criança caminharam e arrancaram alguns tufos de capim.
-Muito bem. Coloquem tudo aqui. Agora é só esperar ferver e comer. Vai ficar uma delícia.
Vocês vão adorar.
- Mas pai...
- O que é Daniel?
- Nada.
-A água já está quase fervendo. Peguem algumas pedrinhas no chão lavem no rio e tragam para mim. Colocarei na
sopa. Servem para dar um gosto especial. Deixe-me experimentar. Huumm... Bom, muito bom. Brinquem por aí
enquanto ela ferve. Quando estiver pronta, eu os chamarei.
Desanimadas, as crianças se afastaram um pouco. Ninguém tinha vontade de brincar. Sentaram no chão e ficaram
olhando para a panela no fogo. A noite tomou conta da mata. Os sons noturnos distraíam e amedrontavam as
crianças.
- Venham! Venham todos! Já está pronta. Façam fila. Quem vai ser o primeiro?
- Vá você Daniel - disse Maurício.
- Pai, estou sem fome - disse André.
- Muito bem, quem vai querer?
Ninguém respondeu.
- Ninguém quer comer? Ora, ora, ora. Vou comer toda essa sopa sozinho. Venham. Aproximem-se. É sopa de
verdade. Eu estava brincando com vocês.
Por encanto, a alegria tomou conta dos rostos das crianças. Elas riram alto como que liberando uma angústia muito
grande. Fizeram um círculo ao redor do fogo e olhavam famintas a comida ser colocada em seus pratos. O aroma
estava delicioso, o sabor não ficava atrás. Seus estômagos roncavam alto na expectativa de receber o alimento.
Comeram vorazmente. Repetiram.
- Tio, quero ir ao banheiro - disse Maurício.
- Você sabe onde é o banheiro. Pode ir.
- Mas, eu...
- Está com medo do escuro, Maurício? - perguntou Mayra.
- Não. É que...
- Então vá logo. Antes que molhe as calças.
Vagarosamente Maurício caminhou em direção ao local determinado em meio à escuridão.
- Espere um pouco, Maurício! - gritou Lucas - eu vou com você.
- Não esqueçam de dar descarga e lavar as mãos – gritou Mayra rindo.
-Vamos dormir. Precisamos organizar os turnos de vigia Cada um ficará sozinho durante duas horas vigiando o
acampamento para que nenhum animal selvagem venha nos molestar e possamos dormir tranqüilos. Quem quer ser
o primeiro?
Com os olhos arregalados, as crianças olharam uma para a outra. Ficar sozinha no meio da escuridão as
aterrorizava. Ninguém se manifestava. Todas ficaram quietas e mudas.
-Não tem voluntário para o primeiro turno de vigia? Então eu vou ser o primeiro. Depois acordarei o Daniel que
acordará o Vinícius que acordará o André que acordará o Lucas que acordará o Maurício que acordará a Mayra.
Vamos dormir um ao lado de outro nessa ordem para não dar confusão na hora de acordar. Agora escovem os
dentes, passem repelente, peguem os sacos de dormir e boa noite para todos.
Tensas e cansadas, entraram na barraca. Logo todas estavam dormindo. No outro dia...
- Tio, o Maurício não me acordou para o meu turno de vigia.
-Não se preocupe, Mayra. Eu estava brincando. Todo mundo dormiu direto. Vamos acordar esses dorminhocos.
Alegres, as crianças foram até o rio lavar os rostos e escovar os dentes.
- O que temos para o café? - perguntou Lucas.
-Quero que vocês andem perto das árvores procurando ninhos de passarinhos para fazermos ovos cozidos no nosso
café.
- Mas eu estou morrendo de fome, pai - disse André.
- Não tem Nescau, tio?- perguntou Maurício.
- Nem Nescau nem mingau seu cara de pau. Tratem de procurar os ninhos dos passarinhos. Subam nas árvores e
peguem os ovos. Não voltem com as mãos vazias.
As crianças saíram tristes. Meia hora depois voltaram mais tristes ainda.
- Ai, que fome! - falou Lucas.
- Acho que vou morrer! - lamentou Vinícius.
- Se nós dependêssemos de vocês para comer não ia sobrar ninguém neste acampamento.
- Eu não gosto de leite, tio.
- Eu não quero ovo, pai.
- Vamos comer o que temos. Ou come ou passa fome. Pode escolher.
Esqueceram os gostos pessoais diante da fome real.
- O que vamos fazer hoje, pai?- perguntou André.
- Sairemos agora e caminharemos o dia todo explorando mata. Só voltaremos ao cair da noite. Peguem as mochilas
e os sacos de dormir, coloquem água nos cantis. Verifiquem se nas mochilas de vocês estão o estilingue, o
canivete, o repelente, uma caixa de fósforos, velas, um rolo de barbante, uma colher, um pratinho, duas laranjas,
um pacote de bolacha água e sal. Coloquem as mochilas nas costas e os bonés. Tudo certo? Então vamos!
Mais tarde...
- Tio, estou com fome.
- Ainda está cedo para parar, Lucas. Vamos andar mais um pouco. Vocês estão marcando o caminho? É muito
importante porque assim não nos perderemos na hora de voltar. Estão vendo aquelas frutinhas ali, são
moranguinhos silvestres. Podem comer os que estiverem vermelhos.
- São gostosos - disse Maurício.
Continuaram caminhando.
- Vamos parar um pouco para descansar.
- Ufa! Até que enfim! Meus pés já estavam doendo.
- Você é mole, hein Maurício! - disse Vinícius.
- Você que é uma lesma misturada com tartaruga - disse Maurício.
- Pai, estou com fome!
- Já, André.
- Já
- Coma suas bolachas. Não todas.
Todos comeram e voltaram a caminhar. A mata se abriu numa enorme clareira e, ao fundo, havia uma casa.
Aproximaram-se da casa. Todos a olhavam no maior silêncio. A casa possuía apenas uma porta e uma janela com
vidros que não deixavam ver o que tinha dentro dela. Cuidadosamente chegaram perto da porta e bateram. Não
ouviram nenhum barulho. Bateram de novo. Nada. Colocaram a mão no trinco e a porta se abriu. Todos ficaram
espantados com o que viram. Havia apenas um cômodo na casa. Era amplo e suas paredes tinham estantes cheias
de livros.
- Veja, tio. Monteiro Lobato. Eu já li Reinações de Narizinho.
-Viram livros de Boccaccio, Rabelais, Defoe, Cervante, Voltaire, Goethe, Sterne, Stendhal, Hugo, Balzac, Jorge
Amado, Flaubert, Dostoievski, Machado de Assis, Ésquilo, Eurípides, Platão, Aristóteles, Shakespeare, Borges,
Brecht, Tchecov,Carlos Drummond de Andrade, Marco Aurélio, Castro Alves, Sant Agostinho, Santo Tomás de
Aquino, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, Pascal...
- Tio, parece que a casa está se movendo.
- Não estou sentindo nada - disse Vinícius.
- Eu também tive a sensação de que ela se moveu, tio.
- Vamos sair.
A porta estava trancada. A casa se movia.
- Nossa, tio, o que será que está acontecendo?
- Não sei, Lucas. Só nos resta esperar.
- Posso olhar pela janela, pai?
- Pode Daniel.
- Não dá para ver nada. Lá fora tem uma espécie de neblina.
Cansados, acabaram dormindo. Mais tarde, quando acordaram.
- Pai, acabou a neblina.
- Vamos tentar sair.
A porta abriu sozinha. Quando saíram quase caíram de costas. Foram recebidos com aplausos por uma pequena
multidão de homens e mulheres. Todos velhos. Passado o susto ficaram olhando para as pessoas. Mayra foi a
primeira a falar:
- Tio, onde estamos?
- Não sei Mayra.
- Não tenham medo. Nós não lhes faremos mal - disse uma voz em meio à multidão.
- Quem são vocês?
- Logo saberão - repetiu a mesma voz - vocês devem estar famintos. Voltem para a casa que nós forneceremos uma
refeição - prosseguiu a voz.
- Preferimos ficar aqui.
- Certo. Por favor, sentem-se. Vamos servi-los.
Seis velhas se aproximam carregando pratos de madeira, travessas com frutas, vegetais cozidos e cereais. Copos,
também de madeira, com água. As velhas colocaram as travessas perto das crianças e se afastaram sorrindo.
- Comam devagar crianças.
Logo todas estavam satisfeitas e a sensação de medo diminuíra bastante. No entanto, continuaram sendo observada
pela multidão que não se movia. Apenas olhando e sorrindo para eles.
Da multidão saíram quatro homens e duas mulheres. Um deles disse:
-Eu sou Eça de Queirós e estes são Shakespeare, Balzac, Jane Austen, Dostoievski, e katherine Mansfield.
Queiram, por gentileza, acompanhar-nos.
Eles começaram a andar em direção a uma casa.
- Por favor, entrem. Não precisam temer nada. Nós os esperávamos há muito tempo.
Todos entraram.
- Fiquem à vontade. Mais tarde voltaremos.
Os seis partiram. Lá fora já não havia mais ninguém.
- E agora, tio? O que faremos?
-Não sei, Lucas. Tudo é muito estranho. Confesso que não entendi nada. Principalmente os nomes. São de
escritores. Mas eles não são os escritores.
- Quanto tempo teremos que esperar, pai?
-Não sei André. Acho que só nos resta aguardar e ver o que vai acontecer. Eles não parecem pessoas más. Vocês
estão com medo?
- Não - todas responderam.
- Acho que eles não voltarão mais hoje. - disse André.
- Vamos dormir.
A REVELAÇÃO
- Bom dia, eu sou Fernão Lopes e estes são Toynbee, Gibbon, Tácito, Tucidides e Heródoto. Nós viemos para lhes
falar um pouco sobre a nossa história, para que vocês compreendam o porquê da vinda de vocês. Bem, nosso
mundo, que é o futuro do de vocês, viveu uma revolução tecnológica espetacular. Aos poucos, os computadores
invadiram nossas vidas e se tornaram essenciais para a nossa sobrevivência.
- Isso ocorreu devido a um mini computador poderoso e baratíssimo que, ligado nos aparelhos de televisão
transformaram-nas em terminais de vídeo, propiciando conexão imediata a um gigantesco computador, que passou
a monitorar toda a vida dos seres humanos no mundo inteiro. Ninguém mais podia desligar as televisões. Todos
aqueles que ousaram sumiram. Foi criada a Rede Mundo.
- Um sistema poderosíssimo de comunicação fez com que o mundo inteiro coubesse na televisão, agora
transformada em vídeo de computador. Com isso, tudo que necessitássemos bastava solicitar via computador e nos
era entregue em casa. O comércio real foi substituído pelo comércio virtual. Mais tarde as relações humanas
também. O ser humano passou a viver isolado, hipnotizado pela tela que a tudo supria.
-No entanto, nem todos compartilhavam com esse novo sistema de vida e passaram a se reunir para discutir o que
estava acontecendo. Entre essas pessoas, destacavam-se os que gostavam da leitura e os que gostavam de ouvir
música clássica. Muitas vezes eram as mesmas pessoas. Perceberam que o homem perdera a sua característica
humana essencial: os sentimentos, a emoção, a apreciação da arte, a imaginação.
- Ninguém mais sabia o que era amizade, sociabilidade, alegria, humor, brincadeira, amor, solidariedade. O homem
se transformara num ser opaco, sem vida, um autômato, uma máquina que trabalhava, comia, assistia a vídeo e
dormia, porque até mesmo a vida sexual das pessoas fora abolida. Agora o sexo era virtual porque a maior
epidemia do século XXI, AIDS, dizimara quase toda a população africana e grande parte da população mundial.
Todos viviam isolados.
- Além disso, a mulher perdeu a capacidade de gerar e cuida dos filhos. Foi a derrota final para a raça humana. A
partir de então, o homem era apenas um produtor de sêmen e a mulher de óvulo. Tudo era depositado no Centro de
Fecundação e congelados. Depois disso, homens e mulheres eram esterilizados. Nos Centros, as crianças eram
geradas em gigantescos laboratórios. Dali seguiam para os Centros de Educação Integral
- Quando morria alguém, logo outro era posto em seu lugar Como uma peça de reposição. Acabaram as noções de
dia, mês ano, país, nacionalidade, cultura. Tudo passou a ser uniforme Ninguém mais sabia ler, escrever, pensar.
Criaram uma língua universal, o Desesperanto. Bastava seguir as instruções ditadas pelas máquinas na nova língua
para ter acesso às coisas. Todos os livros, todas as obras de arte foram destruídos. Não sobrou nada.
- No fim houve a resignação geral. No entanto, aqueles que amavam a leitura e os livros, passaram a escondê-los e
a decorar aqueles que mais amavam. Com o tempo, formaram uma sociedade secreta de difusão de leitura e do
amor aos livros Começaram a agir para recrutar novos protetores dos livros entre a população. O escolhido, depois
de efetuadas as verificações de segurança, passava a aprender a ler, escrever e raciocinar sobre aquilo que leu. Mais
tarde tomava parte dos grupos de discussão e tinha acesso aos livros. Devia ler todos os livros de seu núcleo e
escolher um para decorar e conduzir para as nossas comunidades. Antes de partir, devia conseguir seu substituto
entre os sonâmbulos que vegetavam na sociedade humana inútil
- Muitos foram descobertos e foram eliminados. As cidades foram fechadas. Ninguém mais entrava ou saía. Alguns
conseguiram fugir carregando muitos livros. Os livros e seus proprietários eram queimados. Muitos ficaram para
continuar a pregação ao redor do amor aos livros e a leitura. Os que fugiram fundaram comunidades como esta.
Cada um de nós tem o nome do escritor da obra que decorou.
- Nós somos estéreis. Estamos morrendo de velhice e não há ninguém que possa nos substituir. O futuro da nossa
civilização se encontra nas mãos de vocês. Por hoje é só. Amanhã vocês saberão como poderão nos ajudar.
A MI SSÃO
Após a saída dos homens, todos ficaram quietos se olhando sem saber o que dizer.
- História mais estranha. Parece filme de ficção científica.
- Você tem razão, Lucas. Mas nós estamos vivendo algo real apesar de ser estranho. O engraçado é que Ray
Bradbury escreveu um romance chamado Fahrenheit 451, onde os livro também eram os vilões da história. Todos
os governantes autoritários sabem que o livro e a leitura são instrumentos que libertam o pensamento e faz o
homem buscar a liberdade.
As crianças passaram o resto da manhã lendo. Após almoço...
- Boa tarde! Vocês devem estar confusos com tudo o que souberam. Mas não se preocupem. Não serão obrigados a
fazer nada que não desejarem. Eu sou Clarice Lispector e estes são Lygia Fagundes Telles, Aldous Huxley,
William Faulkner e Virginia Woolf. Viemos para levá-los a um passeio pela nossa comunidade.
- Ela foi erguida aqui com o propósito de receber vocês. Não especificamente vocês, mas qualquer um que
chegasse com a "casa do tempo". Saindo da região das moradias, temos as plantações. Nós somos vegetarianos.
Vivemos do que a terra nos dá. Temos também as oficinas que produzem os móveis, as roupas, as ferramentas,
todos os utensílios necessários para nossa subsistência. Criamos animais apenas para tirar o couro o leite, a lã.
- Todos trabalham para todos. Aquelas são as casas dos mais velhos, isto é, são aqueles que não têm mais forças
para trabalhar. Têm tudo para ter um fim digno. São livros importantes e todos os visitam para ouvir o que eles são.
Assim não esquecem uma única palavra do livro que cada um é. Vocês podem caminhar à vontade. Nós
responderemos a qualquer pergunta.
As crianças brincaram com os animais, correram, pularam, riram sob os olhares extasiados dos velhos que estavam
em toda parte fazendo suas tarefas. Cansadas e satisfeitas, todas voltaram para casa.
- Mais tarde outros virão vê-los.
- Nossa, tio! Que lugar bonito. Se pudesse moraria aqui - disse Mayra.
- Eu não. Só tem velho - disse Lucas.
- Você não gosta da sua avó?
- Gosto.
- Ela é velha?
- É.
-Pois então. Todos serão nossos avós. Já pensou nisso. Sem pai nem mãe para ficar mandando em nós. Faça isso,
não faça aquilo, pára com isso.
- É mesmo.
Quando escureceu, as refeições foram servidas.
- Podemos sair após as refeições.
- Claro! Vocês não são prisioneiros. Podem entrar em qualquer casa. Ouvirão as discussões sobre os livros que
somos.
- Tem casa com histórias em quadrinhos? - perguntou Maurício.
- Lamento, mas nunca ouvi nenhum livro com esse nome.
- E histórias infantis?- perguntou Daniel.
- Vocês encontrarão os irmãos Grimm, La Fontaine, Lewis Carroll, Monteiro Lobato, Andersen e muitos outros em
qualquer uma das casas. É só uma questão de procurar.
-Vamos, tio.
- Vamos.
- Oba! - todas gritaram.
Depois de passarem em várias casas ouvindo trechos de livros e discussões, encontraram uma em que estavam Ana
Maria Machado e Ruth Rocha. As duas contaram-lhes muitas histórias.
Cansadas saíram da casa.
- Boa noite, crianças.
- Boa noite - todas responderam.
Ao chegar em sua casa, todas dormiram rapidamente.
-Bom dia! Espero que tenham dormido bem. Eu sou Aquilino Ribeiro e estes são Homero, Emily Bronte, James
Joyce, Franz Kafka e Albert Camus. Nós vamos levá-los para mais um passeio pela nossa comunidade e contarlhes
mais sobre nossa sociedade. Por favor, nos acompanhem. Nossa cidade é edificada em círculos.
- No centro fica a casa dos tesouros. Lá estão todos os livro que salvamos. Nos círculos temos casas com
romancistas, poetas, historiadores, filósofos, matemáticos, médicos engenheiros, físicos, músicos e muitos outros
ramos do conhecimento humano que puderam ser preservados em livro.
- Diariamente, após as tarefas normais, ocorrem reuniões em cada uma das casas e os indivíduos livros falam sobre
o que eles são. Trocamos conhecimentos e ensinamentos que nos serão úteis no dia-a-dia. No entanto, nós somos
estéreis e, como você podem ver, não há crianças por aqui. Aquele que morre não tem com quem deixar o livro que
guardou na memória.
- Nossa cultura esta fadada ao desaparecimento. Foi pensando muito nisso que nossos físicos e matemáticos livros
desenvolveram uma espécie de máquina, que podemos chama de máquina do tempo.
- Essa máquina só poderia ser utilizada duas vezes. Um para trazer e outra para levar de volta os passageiros. Foi
necessário esperar durante treze anos o momento propício para acionar os mecanismos desenvolvidos por Einstein,
Broglil Lorentz e outros, buscando o uso prático da teoria da noção d equivalência entre massa e energia e do
continuum quadridimensional. Nós estamos no mesmo lugar em que vocês estavam no passado quando entraram
na casa. Aqui é o futuro daquela região.
- É uma espécie de equivalência de tempo e espaço que acontece uma vez a cada cem anos e essa é a nossa única
oportunidade de salvar a nossa civilização. Após intrincados cálculos matemáticos e discussões entre os nossos
cientista livros, a máquina implantada em uma casa de tesouros foi acionada e ela desapareceu.
-Depois de meses aguardando, quando já tínhamos perdido as esperanças, eis que ela retorna e, para nossa alegria,
repleta de crianças.
- O que vocês querem conosco?
- Nós estamos indo para a casa do Bill Portões e sua equipe para que eles expliquem o que vocês poderão fazer
para no ajudar.
- Tio, eu tenho um computador ligado na Internet em minha casa.
- Eu sei, Maurício.
- Eu também tenho, seu bobão - disse Daniel - meu pai comprou o meu primeiro.
- Parem com isso crianças. Eu sei que todas sabem lidar cor computadores. Menos eu. Não vejo graça naquelas
máquinas. Prefiro ler um bom livro, ouvir música ou conversar. Os computadores isolam as pessoas.
- Foi o que aconteceu com as pessoas do nosso tempo após a revolução dos computadores. Chegamos.
- Bom dia! Entrem, por favor.
A casa possuía uma távola redonda com doze pessoas idosa sentadas. A conversa entre elas foi suspensa quando
entraram as crianças.
- Sentem-se ali. Em primeiro lugar, desculpem-nos tê-los tirado de seu próprio tempo e trazê-los para a nossa
época. Já não contávamos mais com a chance de conseguir alguém do nosso passado. Mas, felizmente, vocês
chegaram e espero que possam nos ajudar.
- Meu nome é Bill Portões e eu coordeno o projeto que intitulamos "infecção". Esse projeto visa destruir o Grande
Computador Central inserindo em na sua Central de Processamento um microchip com um vírus poderosíssimo
que desenvolvemos. Só assim poderemos readquirir nossa condição humana neste planeta. A missão de vocês será
entrar no Grande Computador Central e, após atingir a Central Geral de Dados, colocar microchip em uma das
milhares de placas que ali existem.
- A missão é perigosa. Muitas foram e não voltaram. Não sabemos o que aconteceu com eles. Talvez não tenham
nunca chegado. Como nós somos seres teóricos, aquilo que os livros nos dizem, precisávamos de pessoas que não
tivessem nosso tipo de limitação. Parece que conseguimos. Se o microchip for introduzido e tudo ocorrer como nós
esperamos, estaremos salvos.
- Espalharemos nossos homens e mulheres por todas a cidades para serem os novos governantes e orientadores de
uma população que se verá às cegas diante da nova realidade. Todos somos velhos e essa é a nossa única chance de
fazer com que nossa civilização volte ao que era antes da revolução do computadores.
- Como chegaremos até a Cidade Computador Central?
- Fernando Pessoa, Murilo Mendes e Camões foram os únicos que conseguiram informações da localização da
cidade. Eles lhes darão as orientações necessárias para chegarem até, cidade.
- E se nós não conseguirmos?
-Voltem imediatamente e os enviaremos de volta ao seu tempo e nos resignaremos com o fim de nossa comunidade
e de todas as comunidades como a nossa. Vocês terão quatro dias para conseguir chegar à cidade, colocar o
microchip e retomar. Pois este é o tempo que durarão as coordenadas necessárias para mandá-los de volta. Se
perdermos, vocês ficarão aqui para sempre. Nunca mais voltarão ao seu tempo.
- E se nós não aceitarmos.
- Enviaremos vocês de volta para o seu tempo.
- Nós vamos aceitar tio?
- Ainda não sei Lucas. Tem o risco de ficarmos aqui para sempre.
- Eu não tenho medo tio - disse Vinícius.
- Nem eu - completou Mayra.
- Vamos, pai. O senhor gosta tanto de livros de aventuras. Chegou a hora de viver uma de verdade - disse André.
- As coisas não são assim tão fáceis.
- Se fosse fácil, eles já teriam conseguido, pai.
- Você tem razão, Daniel.
- Vamos, tio. Eu quero ajudá-los - disse Maurício.
- Muito bem, crianças. Vocês me convenceram. Se vocês não têm medo, eu aceito.
Todas gritaram e pularam de alegria.
- Vamos prepará-los para a jornada.
-Assim que vocês partirem, todos dessa comunidade e das outras viajarão para as cidades e esperarão nos portões o
resultado da missão de vocês. Muitos não chegarão ao destino porque já estão muito velhos. Mas aqueles que
chegarem iniciarão uma nova sociedade.
Partiram sabendo que tinham apenas quatro dias para cumprirem a missão. No final do primeiro dia, como
Fernando Pessoa havia dito, encontraram uma enorme muralha.
- O que será isso, tio?- perguntou Lucas.
- Parece um muro - disse André.
- Será que cercaram a cidade com uma muralha? - perguntou Daniel.
- Olhem, aqui tem uma entrada - disse Vinícius.
- Vamos entrar com cuidado, crianças.
- Parece a entrada de um labirinto - disse Maurício.
- É um labirinto! - exclamou Mayra.
- E agora? O que vamos fazer, tio?- perguntou Lucas.
- É muito difícil sair de um labirinto. Acho que nossa missão acaba por aqui - disse Daniel.
- Calma, crianças. Vamos voltar para a entrada e comer alguma coisa. Eu estou com fome. Vocês não estão?
- Estamos! - todas responderam.
- Já está escurecendo e não poderemos entrar no labirinto. Vamos nos preparar para dormir.
Amanhã cedo eu lhes contarei como venceremos o labirinto.
-Ah, tio - elas falaram.
No dia seguinte, após o café.
- Muito bem. Vou lhes contar como vamos enfrentar o labirinto. Faremos como Teseu e usaremos o fio que
Ariadne lhe entregou. Será com os rolos de barbante que temos em nossas mochilas. Amarraremos na porta do
labirinto e desenrolaremos enquanto vamos andando. Assim marcaremos o caminho até conseguirmos chegar na
saída. Entenderam?
- Assim é fácil, tio - disse Maurício.
- Então prontas?
- Estamos!
- Daniel, amarre a ponta do barbante naquela árvore. Os outros cubram com folhas para ele não ser visto.
Andaram muito tempo dentro do labirinto. Encontraram muitos esqueletos humanos e de animais.
- Chegamos na saída, tio!
- Vamos descansar e comer.
Felizes, as crianças sentaram no chão e começaram a comer.
- Até que não foi muito difícil, tio - disse Lucas.
- Foi muito fácil. Eu descobriria a saída de olhos fechados disse Vinícius.
- Mais um espertinho acaba de nascer - disse Mayra.
A manhã ensolarada e a tensão relaxada fizeram com que todos adormecessem após a refeição.
- Mayra,acorde! Meu pai sumiu.
- Ele deve estar andando por aí. Volta já.
Todas acordaram.
- Ele não nos deixaria sozinhos - disse André.
- Concordo - completou Maurício.
- O que vamos fazer? - perguntou Lucas.
- A mochila dele está aqui - disse Maurício.
- Veja se o microchip está nela - disse Daniel.
- Está aqui - disse Lucas
- O que vamos fazer? - perguntou Maurício.
- Acho melhor continuarmos a missão. É o que ele faria se um de nós sumisse - disse Daniel.
- Então vamos em frente - disse André - não temos tempo é perder.
As informações de Fernando Pessoa eram só até o labirinto. Para ele, ali era a cidade. Agora estavam sozinhas.
Caminharam em direção a algo preto que se destacava na paisagem ensolarada. Ao chegarem perto perceberam que
era uma gigantesca cúpula. Ela era de vidro escuro. Não era possível ver o lado de dentro. Só podia ser ali a Cidade
Computador Central que, na realidade, não era uma cidade.
- Como vamos entrar? Não vejo nenhuma porta – disse Lucas
- O que vamos fazer?- perguntou André.
- Vamos parar e pensar um pouco. Seria isso que meu pai faria - disse Daniel.
- Precisamos achar alguma entrada - disse Maurício.
- Vamos ver se podemos contorná-la - disse Lucas.
- Ela parece ser enorme - disse Vinícius.
-Acho que sei como entrar. -disse Daniel - Se a cúpula foi feita para proteger a Cidade Computador Central dos
raios solares, ela não deve ser muito profunda sob a terra. Vamos tentar cavar e ver se conseguimos chegar do
outro lado.
- Como vamos cavar?- perguntou Mayra.
- Com as mãos, paus, pedras - respondeu Maurício.
- Vamos começar - disse Lucas.
Cavaram, cavaram, cavaram e cavaram. Durante horas. Sem mostrar sinais de cansaço.
- Encontrei o fim da cúpula! - gritou Vinícius - Venham me ajudar.
Todos cavaram mais freneticamente sem se importarem com os ferimentos nas mãos. Já estava anoitecendo quando
conseguiram abrir uma passagem suficiente para que cada uma delas entrasse.
- Eu vou primeiro - disse Daniel - depois que eu passar passem as mochilas e ajudarei cada um de vocês a entrar.
Daniel passou e recolheu as mochilas. Ninguém conseguia vê-lo, do outro lado. Mesmo assim, um após o outro,
entraram. A escuridão era tão grande que não enxergavam nada.
- Fiquem todos parados - disse Lucas.
- Peguem uma vela e vamos acendê-la.
- Nossa, como está frio aqui dentro - disse Mayra. - O vidro escuro impede a entrada da luz.
- Tem sistema de refrigeração.
Quando a vela foi acesa, as crianças viram uma quantidade enorme de pequenos corredores com as paredes
forradas de placas de circuitos, como o interior de um computador gigantesco.
- Acho que estamos no lugar certo - disse Maurício.
- Como vamos encontrar o caminho e o lugar para colocar o microchip que trouxemos? perguntou André.
- Vamos por ali - disse Daniel.
- Primeiro vamos desenrolar um barbante para podermos voltar para a saída - disse Vinícius.
- Que tal irmos por aquele caminho? - perguntou Mayra.
- Por quê? - perguntou Lucas.
- Não sei! Intuição feminina, talvez.
- Todos concordam em seguirmos a intuição da Mayra? perguntou Maurício.
Ninguém respondeu. Mayra colocou-se à frente e disse: - Já que ninguém tem uma idéia melhor, vamos pelo meu
caminho.
- Certo - disse André.
Ao caminhar, perceberam que estavam numa espécie de labirinto circular. O centro do computador deve ser o
cerne do círculo. Os caminhos eram tão estreitos que só mesmo uma criança para andar neles. Sentiam frio e uma
leve trepidação sob os pés, como se uma máquina estivesse funcionando silenciosamente. Depois de andarem
muito tempo.
- Aqui parece ser o centro - disse Mayra.
- Como vamos saber qual desses é o processador perguntou Lucas.
- Vamos ter que verificar onde há espaços vazios para podermos encaixar o microchip e contar com a sorte – disse
Daniel.
- Aquele ali está separado dos demais. Talvez seja o coração do sistema. Vamos arriscar ali? - perguntou Maurício.
- Como vamos saber se funcionou? - perguntou Vinícius.
- Não há como saber até sairmos daqui. - disse Daniel.
- Então vamos tentar ali. Todos concordam? - perguntou Mayra.
- Vamos tentar - completou Maurício.
Daniel retirou o microchip da mochila. Todas se aproximaram, acenderam mais velas e colocaram bem perto para
enxergar melhor. Daniel escolheu uma fenda vazia e encaixou a placa. O segundos passaram se arrastando e
parecia que nada acontecera. A agonia sufocava o coração de todos. Ninguém falava. Cada um estava esperando
acontecer alguma coisa. Alguns estalidos mais altos começaram a pipocar no ar. O chão começou a tremer mais
forte. Pequenas luzes se acenderam em meio à escuridão e ao frio. O silêncio voltou a reinar. Os corações batiam
tão rápidos que pareciam que iam sair do peito. Novamente pequenos barulhos aqui e ali foram ouvidos. Um vento
repentino apagou as velas. Paralisadas, as crianças esperavam pelo pior. Seus corpos estavam banhados em suor
apesar de todo o frio. Nada acontecia. Absoluto silêncio em meio à escuridão total. Ouviam apenas a respiração de
cada um. As pernas começaram a tremer. O medo e o pavor eram tão grandes que todas urinaram. Nem
perceberam. A tensão os fazia tremer, parecia que o mundo acabara. Reinava o silêncio e a escuridão.
- Acho melhor nós acendermos as velas - disse Daniel num fio de voz.
Tremendo e com muito esforço conseguiram acender um fósforo e colocar fogo na vela da Mayra. Ela acendeu a
dos outros. Novamente ouviram os estalidos e o chão estremeceu outra vez.
Desta vez parecia que os estalidos eram mais altos mais freqüentes e a movimentação do chão mais violenta.
- Vamos caminhar de volta? - disse Lucas.
- É. Acho que não adianta ficar aqui parado - disse Maurício.
Sentindo as calças molhadas de suor e urina, caminharam de volta pelo barbante. Foram acompanhadas por
estalidos e tremores no chão. Chegaram perto do buraco. Daniel foi o primeiro a passar e ajudou os outros. Do
outro lado, a noite o esperava. Uma linda noite cheia de estrelas no céu. As crianças se afastaram e sentaram-se.
Exaustas pela tensão, acabaram dormindo. No outro dia acordaram.
- Será que nós conseguimos?- perguntou André.
- Espero que sim - disse Vinícius.
- Tem alguma coisa para comer? Estou morrendo de fome - disse Lucas.
- Depois de comermos, vamos procurar meu pai – disse Daniel.
Comeram rapidamente.
- Parece que nada aconteceu - disse Mayra
- Vamos procurar pelo tio e voltarmos. Saberemos se conseguimos quando chegarmos na comunidade - disse
Maurício.
Não caminharam muito e encontraram-no dormindo sob uma árvore. Tentaram acordá-lo de várias formas, mas
todas foram inúteis.
- Precisamos carregá-lo.
- Como...?
- Eu sei - disse Daniel - tirem as camisetas e coloquem um dentro da outra. Vamos fazer uma maca e assim
poderemos carregá-lo.
Cortaram duas varas. Enfiaram as camisetas nelas colocaram-no em cima.
- Vamos levantar. Um, dois, três e já - disse Daniel.
- Ainda bem que o tio é magro.
Cansados chegaram na porta do labirinto e sentarem-se.
- Acho que agora um de nós deve passar pelo labirinto pedir ajuda - disse Lucas.
- Não acho uma boa idéia. É melhor ficarmos sempre juntos - disse André.
- Concordo com o André - disse Mayra.
- Vamos carregá-lo da mesma forma dentro do labirinto - disse Daniel.
- Então vamos. Já descansamos demais - disse Lucas.
Pegaram a maca improvisada e entraram no labirinto. Seguiram o barbante. Quando saíram do labirinto viram
Jorge Amado, Fernando Pessoa, Aquilino Ribeiro, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade caminhando
na direção deles. Os velhos tinham um sorriso nas faces, prenunciando algo bom. Guimarães Rosa gritou:
- Vocês conseguiram! O computador foi desligado!
A alegria foi tão grande que as crianças esqueceram que estavam carregando a maca e a deixaram cair. Todas
gritaram e pularam como loucas. Os velhos se aproximaram e Carlos Drummond perguntou:
- O que aconteceu com ele?
- Não sabemos. Ontem ele sumiu e tivemos que fazer tudo sozinhas - disse Mayra.
- Vocês se saíram muito bem. Vamos - disse Jorge Amado.
Os que permaneceram na comunidade os receberam com festas. Tomaram banho, comeram e descansaram.
- Parabéns, crianças - disse Einstein -vocês salvaram a nossa civilização. Só posso dizer muito obrigado a todas. O
seu tio passa bem, apesar de ainda estar dormindo. Nós estamos cuidando dele. Vocês devem partir hoje. Vamos
preparar a casa e assim que as coordenadas se alinharem e o horário for propício nós as enviaremos de volta ao seu
tempo. Fiquem à vontade para fazer o que quiserem, mas não se afastem muito.
Nenhuma delas saiu de perto do pai, do tio.
- Chegou a hora. Não se preocupem com ele. Assim que vocês chegaram ao seu tempo, saíam da casa, pois a
máquina se desmaterializará. Muito obrigado novamente.
As crianças foram abraçadas e beijadas por todos da comunidade. Cada uma ganhou um presente. Entraram na casa
e, quando sentiram que ela parara e a neblina se dissipara abriram a porta, retiraram o tio e se afastaram da casa.
Ela imediatamente sumiu e as crianças reconheceram o lugar em que estavam. O tio acordou. Todas gritaram.
- O que aconteceu, crianças?
- Nós voltamos, pai! - gritou Daniel.
- Nós vencemos, tio! - gritou Mayra.
- Nós derrotamos o computador!- gritou Lucas.
- Nós somos os heróis! - gritou Maurício.
- Nós não tivemos medo - gritou Vinícius.
- Nós somos os campeões do século! - gritou André.
Atordoado com tantos gritos, as crianças o ajudaram a se levantar.
- Já que nós vencemos, vamos voltar para casa e no caminho vocês me contam tudo o que aconteceu porque eu não
sei o que aconteceu comigo.
Cada uma contava a história de um jeito. Foram seis versões. Em cada uma delas, o narrador era o mais corajoso, o
mais inteligente, o mais esperto de todos. Até que Daniel gritou:
- Pai, posso dar um soco neles?
Todos caíram na gargalhada.

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